por Mateus Soares Azevedo*,
extraído da Folha de S. Paulo
"Insensatos, prestai atenção: recebei minhas instruções com maior gosto do que se recebêsseis dinheiro, pois a Sabedoria vale mais do que todas as riquezas. Comigo estarão a glória, a opulência e a justiça. Feliz o homem que ouve a Sabedoria."
Extraídas dos Provérbios, de autoria de Salomão, são as palavras da "Sabedoria" personificada. Elas assinalam o lugar privilegiado do conhecimento no judaísmo, tradição monoteísta que tem seu eixo num livro sagrado. A Torá contém os Dez Mandamentos, principal legislação do Ocidente dos últimos 3.000 anos. Até hoje não colocada em prática ("não usarás o Nome do Senhor em vão, não matarás, não roubarás..."), é tão central que ultrapassou suas fronteiras originais, sendo incorporada por cristianismo e islã. Distintamente dessas religiões missionárias, que buscam prosélitos entre todos os povos, o judaísmo não busca conversos e só raramente os aceita.
O judaísmo legou também os Salmos de Davi, venerados pelos cristãos, e os livros sapienciais de Salomão. Davi fez de Jerusalém sua capital, há 3.000 anos, e Salomão construiu o Templo. Destruído em 600 a.C. e reconstruído, foi arrasado em 66 d.C. pelos romanos. O Muro das Lamentações é o que restou dele.
A derrota para os romanos marca a Diáspora -a difusão dos judeus pelo mundo. Curiosamente, a despeito das tensões, suas comunidades somente prosperaram em terras do islã ou do cristianismo. Vem da Espanha muçulmana um dos ápices de sua cultura, com espetacular florescimento da mística e da filosofia, como testemunhado pelo Zohar -Livro do Esplendor-, principal exposição do esoterismo judaico, e pelas obras de Maimônides.
Há ainda o messianismo. Em oposição ao cristianismo e ao islã, para os quais o Messias já veio, o judaísmo sustenta que ele ainda está por vir, para implantar paz e justiça universais. Imagina-se então o fim da Diáspora.
Não se deve confundir essa concepção com o moderno sionismo. Sua ideologia nacionalista e expansionista é uma secularização do ideal messiânico. O sionismo não é parte constitutiva da religião; ainda hoje rabinos se lhe opõem tenazmente, como Moshe Hirsch, de Jerusalém, que prega a devolução integral das terras tomadas na Palestina.
De fato, entre 1947 e 1948, 1 milhão de palestinos foram expulsos de suas terras; cerca de 1 milhão de colonos originários da Polônia, Alemanha, Rússia e outros países as ocuparam. Seu argumento é que foram expulsos por invasores estrangeiros sem vínculo real com o lugar. "Minha família foi responsável pela guarda do túmulo de Davi por 800 anos", disse-me um palestino. "Que direito têm esses recém-chegados de nos expulsar e ocupar nossa terra ancestral?" Para um observador externo não envolvido nas paixões em jogo, o argumento é irrepreensível.
Não se deve confundir anti-sionismo— oposição política a um nacionalismo expansionista — com anti-semitismo
Tenha-se em conta ainda a humilhação sistemática da população nativa, a detenção em massa de civis, o espancamento de inocentes, deportações, destruição de casas e campos de cultivo, fechamento arbitrário de escolas e instituições, ocupação militar de cidades e vilarejos. Isso sem falar dos assassinatos "seletivos", do terrorismo de Estado -e da instalação de cercas em torno daquilo que A. Gattaz, em "A Guerra da Palestina", chama de o maior "campo de detenção" do mundo, a faixa de Gaza, onde "vivem" mais de 1 milhão de palestinos.
Numa época em que tanto se fala de direitos humanos, é inacreditável que o mundo assista inerte ao seu maciço e cotidiano pisoteamento. Não surpreende que mesmo profissionais universitários e mulheres tenham começado a praticar ataques suicidas, signo de sua desesperadora situação.
Não se deve, assim, confundir anti-sionismo -oposição política a um nacionalismo expansionista- com anti-semitismo. Quanto a esse termo, ele é aplicado indiscriminadamente a duas realidades distintas. A primeira é de caráter religioso: trata-se da oposição que cristianismo ou islã fazem naturalmente ao judaísmo, como esse último comporta obviamente uma dimensão anticristã e antiislâmica. Não há aqui nenhum elemento racial envolvido. Seja de nosso agrado ou não, é da natureza das coisas que uma religião necessariamente exclua as outras. Essa é, ademais, a atitude tradicional dos Padres da Igreja, dos escolásticos e também dos protestantes clássicos como Lutero e Calvino, e tem como motivação a rejeição ao Cristo por parte do judaísmo oficial.
A outra realidade também classificada de anti-semitismo é o racismo, universalmente condenado, e que não deve ser confundido com o "anti-semitismo" religioso.Antijudaísmo (religioso; compreensível), anti-semitismo (racismo; inaceitável), anti-sionismo (político; legítimo): três realidades distintas cuja confusão engendra erros colossais de avaliação e de ação.
* Jornalista e ensaísta, é mestre em história das religiões pela USP e autor de "Mística Islâmica" (Vozes, 2002)
Ótimo texto Marcola, parte o coração conceber uma barbárie dessas em pleno século XXI e com tantos discursos de "paz". Interesante é que enquanto o povo palestino está morrendo de fome, já que a faixa de Gaza está bloqueada e assim os alimentos não entram, nada é feito. Até que ponto as superpotências, principalmente os EUA, interessam em se meter em tais problemas? Pra que existe essa tal de Oraganização das Nações Unidas? Unidas em que? Pelo que? Dúvidas fáceis de responder, tão fáceis quanto se comover e sentir-se impotente diante de tudo isso.
ResponderExcluir